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Apocalipse nos Trópicos: uma reflexão sobre as críticas de setores progressistas ao documentário

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Após o lançamento de Apocalipse nos Trópicos, da Petra Costa, que já ocupa o “Top 10” da Netflix, os internautas foram surpreendidos com a crítica de setores da mídia, não da direita, mas da esquerda, ao documentário. Destaco aqui as críticas veiculadas em dois canais de mídia progressista, que deram destaque a fala de “analistas” que apontaram no documentário uma abordagem “errada” e “equivocada” dos fatos, além de uma visão limitada dos evangélicos.


Não há problemas em se fazer críticas. Elas têm a sua importância. Também não se trata aqui de se sair em defesa de um documentário ou da visão de mundo expressa por ele. Mas de refletir: 1. O que está por trás da crítica de setores progressistas ao documentário, antecedendo até mesmo as críticas da direita? 2. Por que é importante nos fazermos essa pergunta?


Não tenho a pretensão aqui de oferecer a resposta verdadeira para essas perguntas, como se fosse portador da verdade absoluta - quem nem existe - mas compartilhar uma reflexão, um olhar, uma perspectiva.


No que tange a primeira pergunta: 1. O que está por trás da crítica de setores progressistas ao documentário, antecedendo até mesmo as críticas da direita? Primeiro, considero importante ressaltar que os fenômenos humanos são multideterminados. Então, ainda que a resposta que eu ofereça aqui seja pertinente, provavelmente não é a única. Mas creio que uma delas, a que destaco agora, seja o fato de que os setores da mídia progressista já refletem uma “assimilação” da narrativa da “diversidade evangélica”. Mas o que é essa narrativa?


Os cristãos progressistas e, mais notadamente os evangélicos progressistas, passaram a ocupar posições de destaque em universidades, institutos de pesquisas, colunas da mídia progressista e, provavelmente, por sofrerem os preconceitos que os generalizam como “evangélicos”, desconsiderando suas especificidades, identificando-os com os fundamentalistas, resolveram, a partir desses lugares de fala, travar uma cruzada acadêmica, intelectual e política na defesa da “diversidade evangélica”.


De fato, o segmento evangélico é extremamente heterogêneo. O grande problema é que muitos desses sujeitos falam da “diversidade evangélica” como se isso fosse uma descoberta extraordinária, como se as pessoas não evangélicas não fossem capazes de perceber, nos centros e nas quebradas, a multiplicidade de igrejas, com uma enorme multiplicidade de nomes, multiplicidade de doutrinas, resultantes de uma multiplicidade de dissidências. Quem não conhece algum evangélico que acha que sua igreja é a única que interpreta a bíblia corretamente? Alguém achar que a interpretação bíblica de outro grupo religioso é um equívoco já expressa a diversidade.


Uma famosa revista progressista promoveu recentemente um curso com o objetivo de entender os evangélicos e a política, onde a ‘tese da diversidade evangélica’ era apresentada como uma novidade digna de um Nobel. A ênfase dada a essa diversidade, que ocupa também atualmente lugar de destaque nas produções acadêmicas sobre os evangélicos, parece mais uma tentativa, de cristãos progressistas pesquisadores, de dar estatuto de cientificidade ao combate ao preconceito contra os evangélicos, que os atinge diretamente, do que uma produção científica realmente digna desse nome. Não quero dizer aqui que essas produções não são ciência, mas destacar que a ciência não é neutra, o que também não é novidade.


Que há preconceito contra os evangélicos é fato. E o enfrentamento a esse preconceito também é importante. Mas é preciso um pouco de bom senso. Outro dia um jornalista cristão progressista publicou um artigo num veículo de imprensa famosos em que apontava que a “histeria” da esquerda contra os pregadores mirins revelava mais preconceito contra os evangélicos do que com a proteção à infância. Provavelmente ele tem razão. Mas é pertinente enfatizar o preconceito contra os evangélicos num país em que parte expressiva dos evangélicos são, ao ponto de macular todo o segmento, preconceituosos? Todos os evangélicos são preconceituosos? Não! Mas dificilmente é minoria. lgbtqiap+ e afroreligiosos, para citar apenas dois segmentos, que o digam.


Há, acredito, um problema de responsabilidade acadêmica, intelectual e política na narrativa que dá ênfase à diversidade evangélica. Não estou dizendo aqui que há um problema em reconhecer a existência da diversidade evangélica, mas em enfatizá-la. Afinal, não foi pelo que os evangélicos, em sua maioria, tem de diferente que votaram em massa em Bolsonaro em duas eleições e que elegem, a cada pleito, os representantes das bancadas evangélicas. Foi e é pelo que eles têm em comum. Não é pela diversidade, mas pela identidade.


A ênfase na diversidade desemboca, nesse caso particular, num relativismo inconsequente e irresponsável que pulveriza o alvo da crítica e enfraquece as iniciativas sérias e organizadas de enfrentamento ao fundamentalismo religioso no meio evangélico. Enfrentamento que se faz necessário para garantir os direitos de outros segmentos, alvos de ódio, como lgbtqiap+, afroreligiosos, entre outros, além da defesa do Estado Laico. 


Os setores progressistas precisam se resguardar dessa cosmovisão inconsequente e irresponsável. Reconhecer a diversidade evangélica, superar os preconceitos contra o segmento, mas manter a opção acadêmica, intelectual e política pela ênfase na identidade, ou seja, naquilo que o segmento tem em comum, no que une os indivíduos no seu interior, porque são alguns pontos que os unem - sua identidade - que põem em risco à democracia, e não a sua diversidade. 


Assim, ratifico, minha resposta à primeira pergunta - 1. O que está por trás da crítica de setores progressistas ao documentário, antecedendo até mesmo as críticas da direita? - é a de que os setores da mídia progressista já assimilam a narrativa perigosa, inconsequente e irresponsável da “diversidade evangélica” e por isso - talvez também por outras coisas, não descarto - saíram em defesa dessa “diversidade”, supostamente omitida no documentário.


Quanto à segunda pergunta: 2. Por que é importante nos fazermos essa pergunta? Ora, porque estamos assistindo a uma inegável escalada agressiva de grupos evangélicos fundamentalistas organizados sobre as instituições do Estado, que deixam claro que não estão para brincadeira, tornando desnecessárias tentativas, por parte de setores da mídia progressista, de lacrar com vaidades acadêmicas e intelectuais, fundadas na narrativa da ‘diversidade evangélica’ - ou outras - contra o único trabalho cinematográfico robusto que temos que retrata essa realidade no Brasil.


Apocalipse nos trópicos é uma produção cinematográfica e como toda produção do gênero tem seleções, omissões e exclusões, intencionais ou não, assim como recortes, ênfases, edições e, claro, uma narrativa. É lógico que não pode ser tomado como verdade absoluta, objetiva. É uma perspectiva, um olhar, uma verdade, intersubjetiva. E as críticas ao mesmo - fundadas na narrativa assimilada da “diversidade evangélica”, entre outras - parecem desconsiderar tudo isso. Como se fosse possível existir um documentário que desse conta da realidade total, tal como ela é em si mesma. 


Não estou aqui me opondo às críticas - não ganho nada com isso e até concordo com algumas - mas à forma como foram feitas, no meu ver, estão levando setores da mídia progressista à mesma atitude inconsequente, irresponsável e perigosa dos pesquisadores da “diversidade evangélica”. Francamente, existem formas e ‘formas’ de se fazerem chamadas para uma matéria, mas os títulos empregados pelas mídias progressistas que se propuseram a ‘analisar’ o documentário, foram desqualificadores e até agressivos. Esse tipo de abordagem não agrega, causa divisão no interior das forças progressistas num contexto em que a extrema direita, cristã e fundamentalista, só avança.


Leandro Patricio

Doutor, mestre e graduado em História

Especialista em História das Religiões

Fundador e Diretor Presidente da Associação Movimento Brasil Laico


 
 
 

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